O tempo metamórfico do após 2ª guerra mundial, era futuro que viria a revelar-se no despontar do séc. XXI; ele imprimiu nas comunidades profundas alterações, demográficas e outras que lhes são inerentes, as quais moldaram a Medicina de toda a Europa. Em consequência surgiu a Medicina Familiar que enriqueceu a Clínica Geral e desenvolveram-se a Psiquiatria, a Psicologia, a Sociologia e a Reabilitação, entre outras valências que se integraram nas restantes especialidades médicas e, todas elas intrincadas, promoveram a Medicina; aqui, em Portugal, começou a reivindicar-se insistentemente a Gerontologia e a sua parcela Geriatria que têm por objectivo o estudo da senescência, cuidar dos seres humanos na senilidade, prevenir, tratar e curar, se for possível, doenças no Idoso e assistir ao Idoso-Doente.
A necessidade e a imprescindibilidade da Geriatria surgiu porque desde então se assiste ao explosivo envelhecimento da população devido à conseguida diminuição da fecundidade e consequente diminuição da natalidade e ao aumento do número de idosos cada ano com mais anos, mercê de sólida intervenção da Medicina Interna e doutras valências médicas que, no entanto, não se responsabilizaram pela qualidade de Vida existencial desses longevos, não por desumanidade mas porque não puderam nem souberam, por não estarem vocacionadas para tal. Só as ciências que estudam o envelhecimento, a Gerontologia e o seu ramo a Geriatria, estão aptas para, sem amadorismos, cuidarem do Idoso, prevenirem-lhe as doenças e tratarem-nas; estão vocacionadas para tal não só porque são abrangentes, mas também porque se transcendem, ao tratarem a doença, numa assistência integral ao Idoso perturbado, isto é, ao Idoso-Doente.
A Medicina Interna, essencialmente organicista, está vocacionada para a doença, enquanto a Gerontologia/Geriatria estão vocacionadas para o Idoso, para o Idoso-Doente e para as doenças que o Idoso tem; estão vocacionadas para a manutenção da Saúde, da Felicidade do Idoso porque, para o geriatra, é mais importante o Doente que a doença. É que na Geriatria vive uma filosofia, uma doutrina específica, que não é a das outras valências médicas, a qual responde às especificidades do Idoso que são diferentes das que se verificam nos seres-humanos em idades da infância, da adolescência e da adultícia. É esta doutrina e a diferenciação do Idoso que justificam mandatariamente o reconhecimento da imprescindibilidade da Gerontologia e Geriatria numa sociedade em desenvolvimento que pretende cultivar o Humanismo; numa nação da UE que deveria encontrar soluções equivalentes às doutros países desenvolvidos A Ordem dos Médicos ainda não decidiu criar a especialidade mas a titularidade não é peremptória para a satisfação das necessidades do Idoso. É ele, o Idoso, que vai preferindo o geriatra ao internista ou ao médico de família por razões inerentes aos benefícios experimentados. Os governos não se dispensarão de criar o Hospital Geriátrico, como também nunca poderiam ter dispensado o Hospital Pediátrico; é que já se vai notando a tendência para haver mais caixões que berços.
O Idoso é um ser humano diferente da criança e do adulto que foi, mercê de cinco especificidades que o caracterizam:
- DIFERENCIAÇÃO; o Idoso através do seu senescer torna-se cada vez mais diferente do outro, é cada vez mais idêntico a Si mesmo, no desenvolvimento e realce das suas qualidades, positivas e negativas, que o foram estruturando desde a infância.
- LENTIFICAÇÃO (bradipsiquia e bradicinesia); o Idoso lentifica progressivamente os movimentos activos e os passivos, os reflexos, a cinética fisiológica, a percepção, o entendimento, a comunicação, os processos biológicos vitais e, até mesmo, os inconscientes comportamentos teleológicos da Espécie que nele vivem.
- Perda de Capacidades ADAPTATIVAS; a dificuldade de adaptação a novas situações aumenta com a progressão da senescência e do simultâneo declínio da allostasis.
- MISONEÍSMO, isto é, horror às mudanças, principalmente à mudança de ideias, o que pode condicionar a temível neurose de carácter.
- DISFUNÇÃO AFECTIVA, labilidade emocional, expressa em frequentes incontinências emocionais; esta característica pode estar relacionada com o aumento da monoaminoxidase (MAO), ou pode também resultar de patologia neurológica, doença por multi-enfartes, para além da especificidade característica de quem senesce.
Estas características permitem-nos reconhecer o Idoso-Doente pela perda de autonomia e de independência que resulta dela lhe imprimir diferenças bio-psico-sociais:
- Está mais dependente de factores psicológicos e sociais devido à dialéctica fragilizada e perturbada entre ele e o meio eco-social.
- Tende para a cronicidade e para a invalidez, situações que não encontram a solução na Medicina Interna, mas beneficiam dos cuidados geriátricos dirigidos ao idoso que não tem indicação para farmacoterapias.
- Tem maior necessidade de reabilitação cujos resultados são mais demorados.
- Tem invariavelmente uma multimorbilidade na qual predominam patomorfismos de usura, de desgaste, erradamente, a meu ver, classificados como doenças; doença é o que exige farmacoterapia e é susceptível de cura.
Tem grande susceptibilidade para iatrogenias que resultam de fármacos, de inactividade, de psicoterapia mal formulada, duma comunicação defeituosa ou até de carência de intenção; são exemplos de doença iatrogénica a pneumonia, a embolia pulmonar, a rigidez e as anquiloses, a hipotrofia muscular, a osteopenia e a osteoporose, a infecção urinária, a incontinência esfincteriana, as úlceras de decúbito, as síndromes confusionais, a síndrome de regressão, o anaclitismo, a depressão, o agravamento de patomorfismos demenciais, e muitas outras patologias.
O Idoso vive as suas doenças (concretas ou imaginadas, mas todas elas reais para o Doente) para além da biofísica, em comportamentos perturbados com perspectivas de futuro angustiante no qual há vivências ruminadas de morte, duma morte mitificada e nunca mitigada, porque nunca foi tema de diálogo entre Idoso e médico, na intenção de o libertar dos medos que povoam a sua interioridade, para uma adaptação que o conduzirá a uma morte tranquila; esta práxis gerontológica não consta dos propósitos da Medicina Interna por ausência de vocação.
Também as doenças no Idoso têm características que este lhes imprime:
- Têm sintomatologia larvada; são insidiosas, pérfidas, lentas, de frágil expressão e, por isso, dificultam o diagnóstico.
- São múltiplas.
- Dificultam e limitam a terapêutica.
Também na terapêutica há condicionalismos relacionados com especificidades do Idoso, as já referidas e outras de natureza exclusivamente anatomofisiológica que são causa de perda da homeostasia:
- Perda de massa protoplásmica metabolicamente activa, isto é, perda de células,o que significa que há menos consumidores para o fármaco administrado, pelo que a posologia deve ser estudada, diminuída, adaptada.
- Défice de absorção devido à hipotrofia da mucosa intestinal.
- Diminuição da albumina sérica pelo que a fracção livre do fármaco aumenta, o que se traduz numa possibilidade de iatrogenia.
- Diminuição e lentidão do metabolismo hepático.
- Declínio da eliminação renal pelo que o tempo do fármaco em circulação aumenta com probabilidade de iatrogenia.
O tratamento farmacológico no Idoso é uma mínima possibilidade terapêutica; tratar a doença sem abordar o conflito psíquico é prolongar a farmacoterapia e, consequentemente, é expor-se a um risco iatrogénico. A patologia do Idoso nunca é redutível ao biológico, nem ao psicológico, nem ao social; ela engloba doenças da comunicação, perturbações psico-sociais, perturbações funcionais, doenças somáticas, alterações psiquiatras, doenças iatrogénicas todas intrincadas, isto é, a patologia do Idoso é transbiopsicosociológica e também cultural. O Idoso, quase sempre quérulo, acrescenta às suas doenças, alterando-as, sofrimento de reminiscências, de inadaptações, de desamor, de inibição, de medos sempre relacionados mais com o morrer do que com a morte. A memória no Idoso não é uma recordação, mas é a presentificação permanente e dolorosa de emoções que investem relações e imaginações vividas no passado, no qual ele muitas vezes se fixa; a convergência dos globos oculares é um comportamento de fuga para a sua interioridade povoada por aquele passado moderador da solidão que o consome nos seus dias de existência morta.
Resulta assim que os cuidados de saúde a prestar ao Idoso, doente ou saudável ou com doenças, terão de ser específicos, globais e completos, continuados e personalizados, e deverão dirigir-se não só à prevenção no diagnóstico do adoecer, ao tratamento, à reabilitação e à sua reinserção na família e na comunidade, mas também a uma informação e educação psicoterápicas que o conduzam à reaprendizagem de ser saudável por ser feliz. A velhice feliz prepara-se com antecedência.
Bem envelhecer é aquisição de sabedoria através duma peleja dicotómica de presunção desejada e dúvida desesperante rumo à essencialidade, numa permanente motivação bio-psico-sócio-transcendental; é ascensão ao SER, através do ter-sido, no combate a um não-ser, durante o viver existencial.
Este cenário de especificidades não é compatível com a práxis do médico estranho à Gerontologia/Geriatria.
Assistir ao Idoso exige uma visão específica sobre as suas complexidades que deve constituir o conteúdo estruturante da investigação clínica e da assistência ao Idoso situado no tempo e no espaço, em dialéctica com a ambiência e consigo próprio, e sujeito à consciência teleológica da Espécie, da qual consciente ou inconscientemente se foi depurando, por racionalização, através do viver existencial que constituiu a sua História autobiográfica.