sábado, 13 de outubro de 2012

Saúde - Doença - Ser Doente, no Idoso


O conceito essencialista de Ser humano entendê-lo-á como entidade espiritual e, por isso, como “Ente abstrato” situado no Tempo; no conceito existencialista, o Ser humano, além de Ser, tem existência conferida pelo seu corpo que ocupa espaço e tempos. Assim, na perspectiva da Medicina, o Homem só pode ser entendido na sua globalidade biopsicossocial e espiritual em situação temporo-espacial e em dialéctica que lhe confere ser também Ser cultural e Ser histórico; Ele contém nas suas ancestralidades Consciência Teleológica da Espécie, expressa no que chamamos “instinto de conservação da Vida”, significando a capacidade inconsciente de manutenção da continuidade da Vida existencial, fiel ao cumprimento dos imperativos finais de perpetuidade da Espécie.

A cisão dualística em Ser e corpo, Eu e os outros, sendo indesejável e só aparentemente válida, é necessária ao estudo do Ser humano. Para estudar é imprescindível, por incapacidade linguística, dividir mas, sem esquecer o conceito de globalidade, sem que mentalmente se deixe de unificar.
Desgraçadamente a escola de ciências médicas, despreocupada, transmitiu-nos noções de cariz dualísta que toldam a transparência do que é real: doença e Saúde, Doente e doença, profilaxia e terapia, evidência e intuição, ilusão e realidade.

Na relação com o Doente, durante as nossas lides, que diferença poderemos encontrar entre a realidade de uma ilusão e a ilusão de uma realidade?!
O concreto e a evidência, não raras vezes, são aparências, superficialidades lineares, são apenas validades, apenas realidades; e digo “apenas” porque o sufixo “idade” confere ao vocábulo, temporalidade; com efeito, “validade” não significa “Verdade”, vocábulo este que contém perenidade; nem “realidade” é o mesmo que “Real”; o Real e a Verdade escondem-se além das aparências sensíveis, são conceitos absolutos e, por isso, inatingíveis e incompatíveis com a Vida existencial. Todavia, estas falsidades e precaridades são-nos imprescindíveis na nossa práxis diária e mesmo em toda a nossa Vida existencial; por conseguinte, não as dispensaremos, mas tenhamos consciência do seu dúbio e limitado valor na compreensão do Ser Doente sofredor.

E doença, o que é?  Quem é o Doente?  O que é Saúde?  

O envelhecimento das comunidades devido não só ao aumento do número de idosos (o absoluto e o relativo), mas também e fundamentalmente à diminuição do número de jóvens, consequência da diminuição da natalidade pelo declínio da fecundidade e pela interrupção voluntária da gravidez, e principalmente devida ao fenómeno da emigração, coage-nos a questionar se os critérios de causalidade que nos têm condicionado, continuarão válidos.
Esta civilização de comunidades envelhecidas, vítima de políticas subvertidas a um desvirtuoso economismo por elas iniciado, que sustenta um agigantado consumismo, confere à doença o estatuto de “coisa-de-mais-valia”, com prejuízo para o Doente sofredor e para o acto-médico e com desvirtuação da Medicina.

A Saúde deve ser entendida como equilíbrio instável e nunca como equilíbrio estável; na estabilidade há conteúdos de morte; numa comunidade, enquanto a juventude e a adultícia a convulcionam com criatividades, a velhice estabiliza-a numa estagnação; a estabilidade, quando duradoura, só na morte se encontra. Saúde é desequilíbrio, inerente à Vida existencial, com capacidades de reequilíbrio.

Ser Doente é Ser perturbado e, por o ser, é também perturbante, perturbação consequente de dialéctica entre a Pessoa e o meio eco-social e também entre a Pessoa e ela própria. O comportamento do Ser Doente a reagir à sua perturbação, na recuperação do seu equilíbrio pode expressar-se em doença. Isto significa que a Pessoa tem doença por ser Doente; não é Doente por necessariamente ter doença e, não raras vezes, até tem doença para não ser Doente. Não obstante, por vezes, perturba-se e É Doente por ter uma doença, se tiver conhecimento que a tem.

Disto se infere que a doença contém uma finalidade teleonómica comum a todo o comportamento do Ser humano, a qual é a de preservar a Vida existencial, pela restituição da Saúde, do equilíbrio. A doença é sempre uma reactividade contra o agente causal, directamente proporcional à vitalidade e á capacidade da Pessoa que a expressa; quando a doença é frágil nas suas expressôes sintomáticas, como acontece no Senil, ela não se cumpre nos seus objectivos e, quando assim é, o prognóstico é reservado e prenuncia morte. No Idoso, a doença é insidiosa, silenciosa, frágil e, por isso, dificulta o diagnóstico que por vezes é tardio. A doença, como comportamento do Ser Doente, é dependente das camadas histórica e cultural e também da época e do espaço geográfico em que o Doente está situado; é po isso que ela não é igual em todos os povos, nem em todo o Ser humano do mesmo povo; nem a mesma doença na mesma pessoa, é  igual no passado, no presente e no futuro, não obstante o presente e o futuro, dessa mesma doença, serem influenciados pelo seu passado; mas, em todo o Ser humano a doença é sempre vivida, para além da biofísica, numa perspectiva de futuro angustiante e, no Idoso, com ruminações de morte, não raras vezes, obsessivas, quase sempre tingidas de depressão. Isto exige que a doença seja personalizada principalmente no Idoso que é Ser fortemente diferenciado. 

Tenho por pertinente, oportuno e necessário, desde já, esclarecer que estes conceitos de doença e de Ser Doente têm por objectivo fundamental guiar-nos na acção de ajuda ao Doente, na farmacoterapia e em outras terapias; necessariamente terão de ser personalizadas e adaptadas ao espaço e ao tempo em que o Doente se situa e deverão aplicar-se muito mais de  acordo com as intenções e com a perturbação que o Doente deixa transparecer durante a consulta, do que com a doença.

Sabemos ainda muito pouco da doença; todavia, do Ser Doente e das terapias sabemos muito menos. 

Para a relação Médico-Doente, a doença é o veículo de comunicação; deveria ser sempre o diálogo afectivo na relação terapêutica, aqui deveria iniciar-se a terapia. Continuamos erradamente a necessitar da doença que justifique a permissão do diálogo entre Doente e Médico e, por outro lado, o diálogo é cada vez mais dificultado pela imposição de normas ditadas por políticas da saúde, as quais insidiosa e intencionalmente se mesclam e se fundam nas problemáticas do consumismo, exigindo que o Médico se comprometa cada vez mais com mais doentes e que supostamente os “observe “ em cada vez menos tempo e assim, a Medicina não acontece. Medicina não é fachada; é missão profissionalizada substancionalizada em psicomatéria cognitiva-afectiva, em humanismo alicerçado em mística que felicita quando não nos ocupamos apenas da doença mas também e principalmente do Doente.

Para o Médico, a doença é o conhecimento que ele tem dela. A doença deverá ser interpretada como psicossomatismo; não raras vezes, é linguagem incisiva, enérgica expressão corporal daquilo que não foi verbalizado, é o reequilibrar da relação inter-individual perturbada e, quando a relação é nula, é o grito de súplica do Idoso para reocupar os outros consigo.
Nesta reactividade de luta pela recuperação da Saúde, em qualquer idade, a doença manifesta-se, preferencialmente, naquelas áreas corporais que, no início, foram atingidas no processo do nascimento: - a pele, pelo atrito ao atravessar o “túnel vaginal”;  os sistemas cárdio-circulatório e respiratório pela onfalotomia;  o aparelho digestivo, pelo início das suas actividades funcionais, quando o bébé começou a mamar; em síntese, quando o nascido inicia a sua “embrionária” autonomia.

A independência e a autonomia têm o seu prêço de complexidades; eis a primeira informação, não captada por inconsciência, na Vida existencial do Ser humano.

A Terapêutica da doença nunca deverá dificultar a acção do Ser, fiel à Consciência Teleológica da Espécie; quero dizer, a terapêutica não deve contrariar as naturais linhas do reequilíbrio, isto é, devemos recusar terapêuticas que e quando interferirem no benéfico e natural esforço de cura, como sejam antieméticos, antidiarreicos, antipiréticos, anti-inflamatórios, entre muitos outros.
A nossa atitude derá ser expectante e de ajuda, de colaboração com a natureza, administrando o fármaco só quando a evolução da síndrome mórbida o exija; a farmacoterapia não cura, mas ajuda a natural e espontânea recuperação da Saúde, quando as defesas são frágeis, quando a doença é inexpressiva, mas também quando a violência da sintomatologia pode pôr em perigo a Vida existencial do Doente. As lutas conduzem a victórias mas também a derrotas.
Enquanto no jóvem devemos considerar a violência expressiva da doença, na senilidade deveremos estar atentos à fragilidade da doença; uma sintomatologia débil, apagada, exige a intervenção farmacoterapêutica que, sendo imprescindível, é de difícil aplicação.
A necessidade da profilaxia, mais que noutras idades, agiganta-se no Idoso; ela deve ser concebida com antecedência, nos critérios de diagnóstico.
O Diagnóstico no Idoso, mas não só neste, deve ser, não o da doença, mas sim o do “Adoecer” e, preferencialmente, o do “Ser Doente”.

A senilidade, não sendo doença tal como a doença não é velhice, constitui todavia um terreno de fragilidades susceptível à instalação de multimorbilidade; a natureza destas fragilidades é não só biopsicossocial por dialéctica perturbante, mas também elas resultam de alterações orgânicas, somáticas e funcionais, consequentes de perda de massa protoplásmica metabolicamente activa, isto é, de células, de perda de corpo e, consequentemente, declínio fisiológico e inevitáveis transtornos metabólicos. Isto considerado, direi que a profilaxia no Idoso deverá fundamentar-se, com adequada antecedência, no combate ao declíneo psico-orgânico e manutenção do equlíbrio físico, psíquico e social na sustentabilidade da sua independência e autonomia.

A Gerontologia e a sua disciplina Geriatria são ciências multidisciplinares, são antropociências elaboradas com antropociências; elas prenunciam mutação nas ciências médicas, elas conferem uma renovação essencial à Medicina.

No Ser humano em senescência, o médico deverá sempre considerar cinco objectivos fundamentais:
  1. Manter a Saúde, através da senescência, pela actividade já que esta é condição “sine qua non” para uma longevidade saudável. Quando falo em actividade refiro aquela com intenções sociais e não a uma sem objectivos, refiro-me à mobilização da cognição, da afectividade e da motricidade na sua elaboração.
  2. Evitar  prioritariamente a morbidez,  o adoecer, pelo estudo das fragilidades do terreno; secundariamente, a doença e a granda invalidez social, entendendo-se por esta o impedimento da Pessoa viver na comunidade e para ela, como todos os outros, embora com alguns condicionamentos de capacidades, ou de possibilidades, isto é, das suas aptidões, respectivamente, centrais ou periféricas.
  3. Curar o Doente, entendendo-se por curar, reequilibrar, adaptar e minimizar ou anular a doença , se houver.
  4. Reabilitar a Pessoa para que se expresse em actividade adequada; note-se que reabilitar não é conseguir um ser humano esteriotipado, tal padrão convencionado pela sociedade, nem é exigir que ele venha a ser como quando era jovem; reabilitar a Pessoa é criar-lhe mecanismos  de adaptação, conciliá-la com Ela própria e solicitar-lhe o máximo possível das suas capacidades e possibilidades na construção dos seus tempos para os outros, evitando assim o egoísmo que, no Idoso,  é temível solidão afectiva; e estimulando também a curiosidade e o conhecimento através da comunicação pela relação inter-individual, evitando assim o isolamento na ignorância que é um modelo, também temível, de solidão cognitiva.
  5. Oferecer ao Idoso condições internas e externas para morrer com dignidade entre os outros, isto é, ajudar a Pessoa a morrer.


Desgraçadmente, sabemos muito pouco do Espaço que envolve a “morte”, o antes, o durante e o depois, nem o que é a “morte”, nem o que é o “morrer”. Mas podemos e deveríamos meditá-la.
Esta problemática não tem lugar neste colóquio; todavia, poderemos ocupar um pouco do nosso diálogo, que se segue, com este enigma tido, desde sempre, como “verdade” dogmática silenciada e guardada no baú dos tabús das religiões.

Termino com as seguintes lucubrações:
  1. O senescer deve ser meditado e a velhice deve ser aprendida em antecedência através de grande investimento no SER. Quem investe apenas no ter, investe  em valores precários e assim se conduz, alienado, para a falência na senilidade.
  2. Ajudar o Idoso não é substitui-lo no que ele pode fazer; ajudá-lo é permitir que ele continue a viver as suas experiências confiadamente, emliberdade, sem inibições; é alimentá-lo na esperança de poder Sempre superar-se, um sempre de todos os instantes.
  3. O Idoso é um ser diferenciado, idêntico a Si mesmo, irrepetível; assiste-lhe o direito de ser o que É, não o que se entenda que deva ser; tem o direito de continuar a ser inconcluso, imprevisível, livre , sensível e dotado de capacidade evolutiva.
  4. O estudo da senescência é uma problemátuca de perspectivas.
  5. A Gerontologia tem de habilitar-se para uma leitura interpretativa dos sinais biopsicossocio-histórico-culturais que se apresentam no Idoso com muitas máscaras comportamentais que vão do sofrer à doença, do sofrer à Saúde e do sofrer à morte.
  6. A Gerontologia deve comprender as diferenças e combater desigualdades psicossociais, fiel a uma intencionalidade de cidadania racionalizada e adequada.