segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A Consulta em Geriatria


Esta consulta deve ser uma relação bilateral médico-doente, horizontal e empática; por isso, também terapêutica. Se, depois deste encontro, o Doente não se confessar melhorado é porque a relação foi deficitária.

O Idoso deve ser aceite, de modo positivo e incondicional, mais como Ser doente do que como alguém que tem doença.

Ser doente é um ser perturbado, independentemente de ter ou não doença; a doença para o Idoso pode ser comportamento reactivo equilibrante, como seja o de reocupar os outros consigo, quando isolado ou quando o sofrimento da consequente e temível  solidão se anuncia

O médico, perante o Idoso sofredor, mais que saber dizer, deve saber ouvir com humildade intelectual e controle do seu egocentrismo. Saber ouvir é escutar, pensar e sentir o Doente, com emoção.

Durante a consulta, não deve interferir com palavras que roubem o tema ao Doente, nem deve impor um modelo pessoal de comportamento; antes deverá sempre respeitar o modelo de vida do entrevistado, transparecendo autenticidade solidária.

A resposta à informação solicitada pelo Doente deverá ter um efeito terapêutico; para o conseguir, o médico deverá considerar que, no diálogo, são mais importantes os silêncios que as palavras para entender, quando o Idoso diz, a realidade contida no que ele não diz; e, quando o Idoso diz “quero saber tudo”, é necessário saber porque é que o diz e o que, na realidade, ele quer saber. O médico deve conduzir o Idoso à consciência de Si, para que conheça as suas potencialidades e participe na sua própria cura, sendo certo que é sempre o Doente que se cura; o médico ajuda-o a curar-se mas, certo é também que, sem esta ajuda, é quase impossível a cura, assim como ainda ela não se verificará sem a colaboração do Doente.

Não esquecer:
I – que na senilidade não há doença que não seja simultaneamente do somático e do psíquico e que todo o órgão e a sua função estão intimamente relacionados com o Eu que, mediante o processo mental, se anatomiza no cérebro em expressões de emoção e de pensamento.
II – que o Idoso é um ser humano diferente da criança e do adulto que foi, mercê de 5 especificidades que o caracterizam:
  1. Diferenciação; o Idoso, através do seu senescer tornou-se, progressivamente cada vez mais diferente dos outros e mais idêntico a Si mesmo,  desenvolvendo e realçando as suas qualidades,  positivas e negativas, que o foram estruturando desde a infância 
  2. Lentificação (bradipsiquia e bradicinesia); o Idoso lentifica progressivamente os movimentos activos, os passivos e os reflexos, a cinética fisiológica, a percepção, o entendimento, a comunicação, os processos biológicos vitais e os instintos feitos de memória teleonómica da Espécie.
  3. Perda de capacidades adaptativas; a dificuldade de adaptação a novas situações aumenta com a progressão da senescência e do simultâneo declíneo da homeostase.
  4. Misoneísmo, isto é, críptico às mudanças, principalmente nas ideias e nos critérios.
  5. Disfunção dos afectos expressa em labilidade emocional por incontinências emocionais; muitas vezes as lágrimas não chegam aos olhos.
III – que a senilidade não é doença nem é uma idade; é comportamento. 
IV – que a senescência avançada (senilidade), não sendo doença, é factor de risco para a instalação de patologias, sejam elas anatómicas, funcionais, psicológicas ou psicossociais.
V – que a primeira etapa da consulta é avaliar o grau de autonomia e de independência do Idoso não só pela observação do sistema músculo-ósteo-articular, mas também pela qualidade da comunicação.
Quase sempre o ser humano entra na senilidade pela porta da psicopatologia que se ocupa da relação perturbada; a neurose é o seu modelo estrutural porque é uma perturbação da comunicação.
VI – que, para o médico, deve ser mais relevante o “ser  doente” do que o “ter  doença”. Ser Doente é estar perturbado e quem está perturbado é perturbante no ambiente eco-social em que se situa.
VII – que toda a doença no Idoso tende, por si só ou pelas sequelas, para a cronicidade e para a invalidez, pela perda de autonomia e de independência.
VIII – que o Idoso tem maior necessidade de reabilitação, a qual é mais lenta agora que em idades antecedentes.
IX – que no Idoso com doença há, invariavelmente, multimorbilidade e grande susceptibilidade para iatrogenias que resultam de fármacos, de inactividade, de psicoterapias mal formuladas, duma comunicação defeituosa ou até mesmo de carência de intenção; a palavra, quando inadequada ou mal formulada, é perigosamente iatrogénica e pode ter, no Idoso Doente, efeitos devastadores.
X – que o Idoso vive as suas doenças, as reais e as imaginadas, mas todas reais para ele, para além da biofísica, projectando-se  num futuro feito de angústia, no qual há ruminações de morte.
XI – que, no Idoso, a doença é insidiosa, tem frágil expressão, tem sintomatologia larvada, é de diagnóstico difícil e, por isso, não raras vezes, o diagnóstico é perigosamente tardio.
XII – que diagnóstico é o que predomina num terreno com multimorbilidade e que, no Idoso, a polipragmasia terapêutica é um grave êrro pelo perigo de iatrogenia devida a condicionalismos anatomofisiológicos, tais como:
  1. perda de massa protoplásmica metabolicamente activa, isto é, perda de células, o que significa haver menos consumidores para o fármaco, pelo que não deve ser prescrito  na  habitual dose para o adulto.
  2. défice de absorção devido à hipotrofia da mucosa intestinal.
  3. diminuição da albumina sérica.
  4. declíneo e lentidão  do metabolismo hepático.
  5. declíneo da eliminação renal.     
XIII – que, se não for abordado o conflito psíquico, a farmacoterapia  prolongar-se-á e o risco de iatrogenizar o Idoso aumenta.
XIV – que a patologia e a terapêutica no Idoso nunca são redutíveis ao biológico, nem ao psicológico, nem ao social. Elas englobam doenças da comunicação, agressões psicossociais, perturbações funcionais e anatómicas, alterações psicológicas e doenças iatrogénicas e sequelares todas intrincadas pelo que, a consulta do Idoso terá de ser, necessária e imprescindivelmente, transbiopsicosócio-cultural.
XV – que o Idoso quérulo acrescenta às suas doenças sofrimento de inadaptações, de desamor, de inibições, de reminiscências e de medos relacionados mais com o morrer do que com a morte.
A memória no Idoso não é recordação, é antes presentificação permanente e dolorosa de emoções que investem relações e imaginações vividas no passado no qual se fixa. A convergência dos globos oculares traduz um comportamento de fuga para a sua interioridade povoada por aquele passado, moderador da solidão que lhe vive nos seus dias de existência morta.

Resulta assim que a consulta de Geriatria exige do médico disponibilidade e tempo para ver, ouvir e sentir o Idoso que sofre; exige do médico humanismo e solidariedade que é o novo rosto  da Medicina rica de competência, de sabedoria e de compaixão.

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