domingo, 8 de junho de 2014

ASPECTOS PSICOLÓGICOS DA RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE

Resumo

A comunicação que se segue tem por objectivo deixar-vos à reflexão ferramentas filosóficas e psicológicas que possam constituir matéria de doutrina para uma relação, na situação terapêutica; quero dizer que desejaria que estas considerações nos conduzissem a um silêncio meditativo que confira sentido às palavras e conteúdo ao futuro da nossa práxis.

Relação médico-doente: indivíduos diferentes num espaço e tempo comum

Na relação médico-doente confrontam-se dois indivíduos antropologicamente diferentes, num espaço e num tempo que lhes é comum. Cada um deles tem um tempo interior (ritmo bio-psicológico) diferente; adquiriram uma aprendizagem psico-social diferente; podem vir de tempos e de espaços diferentes; têm uma estrutura cognitiva e afectiva diferente; as suas histórias bio-psico-sócio-culturais são diferentes; cada qual, frente ao outro, é ser cognoscente e cognoscível e é ser que sente e é sentido. Este contexto confere complexidade à relação inter-individual e pode dificultar a comunicação e a eficácia do acto médico.
Comunicar é, por enquanto, expressão corporal que pode incluir a palavra; é dialogar e dialogar é criar no Outro, é tentar acender alguma luz no Próximo; muitas vezes o próximo sou Eu mesmo. O diálogo converte o Tu e o Eu em Nós; no diálogo o indivíduo deve despir-se de orgulho e de intolerância e vestir-se de humildade e de compreensão.
Doente e médico, face a face, encontram-se para uma relação inter-individual, relação entre dois indivíduos confrontados, ambos portadores duma mesma consciência, a da Espécie Humana, e duma evocação, isto é, de memórias inconscientes antroposóficas. Cada um deles é Ser cognoscente e cognoscível e é Ser que sente e é sentido, isto é, cada qual, em relação ao outro, é sujeito e é objectum ligados por uma linguagem-comportamento que implicita as três acções do Homem: cognição, afectividade e motricidade. Na expressão, veículo destas acções, predomina a palavra dinamizada pelos órgãos mais ricos em semântica: os olhos, a laringe e as mãos. Cada um deles, face a face, pensa o Outro e, se consciente de Si, pensa-se Ser pensado pelo Outro, pensa-se Ser pensado por Si, pensa-se “Ser pensador” e ainda, sente-se Ser sentido pelo Outro, sente-se Ser sentido por Si, sente-se “Ser sensível”.
Neste contexto, que confere complexidade ao acontecer da relação inter-individual, poderão desencadear-se as acções que satisfazem as necessidades de cada um, condicionadas pelo espaço e pelo tempo da circunstância de ser Doente e de ser médico; então, acontece o diálogo que pode incluir, também a palavra. Cada um deles diz palavras que, ditas descuradamente por um, podem ter um conteúdo semântico, diferente do desejado, para o outro, não só porque as circunstâncias de ser Doente e de ser médico são diferentes, mas também porque cada indivíduo é o corolário do seu passado, da sua aprendizagem psico-social adquirida desde o seu nascimento, se não desde antes; cada um deles vem de espaços, de tempos e de culturas diferentes. Em consequência, o equipamento cognitivo e afectivo que cada um traz consigo é diferente. Isto pode dificultar a relação inter-individual na situação terapêutica; por isso, o Médico antes de saber dizer deve saber ouvir com humildade, paciência e disponibilidade.
Médico com mais convicções que compreensão não dialoga.
Todo o comportamento do Homem é memória (cognitiva, afectiva e motriz) em acção; a memória endocrínica, a imunitária, a genética, a da Espécie e a memória inconsciente são exemplos.
Doente e médico, confrontados e situados num espaço que aparentemente lhes é comum e que, em verdade, é pertença dos dois, agem mobilizando o equipamento conferido pelas suas experiências vividas, gratas e ingratas, memorizadas, conscientes algumas e outras inconscientes.
Aquele espaço poderá ser o hospital, o centro de saúde, o consultório, a residência do Doente ou a do médico, ou outro e nele, médico e Doente agem, condicionados pelo estatuto instintivo, arquetípico, de propriedade e de territorialidade, o que implica a situação indesejável de dominante e de dominado e consequente e respectivamente, de prováveis presenças agressivas e inibidas, o que também compromete a relação cognitiva e afectiva na situação terapêutica. Mas, ainda que o médico, consciente destas impediências, as ultrapasse ou as minimize através dum diálogo inteligente, o Doente para ele é apenas o produto duma interpretação superficial que é a sua e que não vai além das aparências sensíveis; ela é apenas a imagem devida ao processo de assimilação-operação-utilização com acomodação, de Jean Piaget; esta construção, condicionada pela instância do Doente, é edificada no médico, por ele mesmo, e causa-lhe uma psicometamorfose que poderá ser positiva ou negativa para o reequilíbrio da relação, perturbada no Doente ocupado em esforços de reorganização da sua identidade inibida, inferiorizada, desvalorizada ou insegura.

A defesa da dignidade do Doente

Esta análise pretende meditar as dificuldades na relação médico-Doente e as de estabelecer a dignidade do Doente que lhe é necessária e imprescindível, mas também, só por si suficiente para uma eficiente relação empática, para uma desejável comunicação.
O Ser Doente é um ser perturbado, em desequilíbrio prolongado, com dificuldades de reequilibração; é vulnerável, fragilizado e conduzido por determinantes externas e internas a uma crise dialéctica que se expressa no ambiente eco-social ou, quando este é insuportável, o Doente não se expressa e mergulha no seu mundo imaginário, interior, incomunicável, psicótico, que ele livremente contesta e modifica, para que viver lhe seja auto-permitido. Urge que sejamos conscientes desta patologia, para que a nossa intervenção seja humanista e nunca patogénica. Qualquer destes homens, o neurótico ou o psicótico, com ou sem somatizações funcionais ou orgânicas, anela pela liberdade de Ser; liberdade até de ser neurótico ou psicótico quando não lhe é permitido ser Homem-senhor-dos-seus-destinos.
A dignidade do Doente implicita a dignidade interveniente do médico porque só este lha poderá defender, que não a Instituição, que não a Sociedade; estas, pelo contrário, têm subvertido o Homem a valores pré-estabelecidos, utilitários, convencionados e convenientes à classe dominante, através duma educação psicossocial colonialista, exercida nele desde o seu nascimento; sempre que um homem despreza ou contraria esses valores que a sustentam, a Sociedade reprime-o e marginaliza-o. Lembro-vos o desempenho de Jack Nicholson no filme “Voando sobre um ninho de cucos”, em que é realçada esta problemática, presente também nas recentes intenções vindas do Ministério da Saúde, e interrogo-me se não será lícito pôr em causa a leucotomia como terapêutica (não, obviamente, como investigação do respeitabilíssimo e galardoado Egas Moniz). Mas o médico, se não servir o convencional, os conceitos e os lugares comuns elevados ao nível de morais, tingidos de pseudo-metafísicas, estabelecidos pela classe social dominante, também ele, pode ser silenciado, marginalizado ou impedido de agir em favor do Doente desprotegido; é que tal sociedade exige que o Médico recupere o Doente para que continue a defender-lhe os valores que a sustentam e não que ele seja recuperado para a sua emancipação ou para conseguir autonomia, capacidade crítica e combatividade afectiva, não viesse ele contestar a estrutura social, não viesse ele abalar os alicerces do Poder. Este contexto é muito evidente no Doente psiquiátrico, no Adolescente e no Doente geriátrico; por isso eles são empurrados para o universo do esquecimento, sendo certo que nenhum deles, especialmente o Idoso, solicita paternalismos; eles só pedem que não os empurrem.
Não há País válido com silenciados e dependentes.
O médico, quando consciente da dignidade que deve presidir à sua práxis de acção-reflexão, não deve ceder às intenções necrófilas da classe social dominante, mas antes agir em comportamentos autónomos, inovadores e até, se necessário, de transgressão social, mas sempre fiel ao Humanismo e ao Hipocratismo que o sustenta.
É que ser livre apenas de aceitar não-ser-livre perverte e contraria gravemente as consciências, a antroposófica e a da Espécie, que vivem em todo o Ser Humano. É o respeito pela liberdade do Homem viver a sua existência, através das suas experiências, na satisfação das suas necessidades, é o conferir-lhe a liberdade de crescer em espírito, de pensar, de sentir, de se expressar, de agir, que caracteriza a dignidade do Médico, na defesa da dignidade do Doente. O SER- Humano seja ele doente, saudável ou médico, não pode pensar-se livre enquanto for apenas livre de aceitar o passado que lhe construíram e o futuro que pretendem destinar-lhe. O Homem deve viver livremente a sua existência consciente de Si; todavia, o conceito de liberdade merece-nos algumas reflexões.

Liberdade e condicionantes da vida existencial

O Homem, como qualquer Ser biológico, está fatalmente sujeito a três determinantes, intrincadas entre si, as quais ditam a sua Vida existencial:
1. Consciência Teleológica da Espécie - expressa no “instinto de conservação da vida” que leva o Ser-Humano a agir, numa dinâmica de sobrevivência, sujeito aos imperativos finais da Espécie. Através dos seus comportamentos primários, pulsionais, hipotalâmicos, (beber, comer e copular), o Ser-Humano eterniza-se, porque a Espécie Humana é dotada, através da corporificação, de uma juventude e de uma Vida existencial perpétua; o corpo, subestrutura do SER, alberga em si o fim do existir, a “morte”, mas também é receptáculo das células germinativas que veiculam a Imortalidade; entenda-se, a da Espécie cuja Teleonomia permite que, desde os primeiros momentos, o recém-nascido sobreviva, graças ao aparelho hipotálamo-recticular, de maneira inata e reflexa, por comportamentos primários indispensáveis à sua Vida existencial orgânica e vegetativa elementar; ele mama sem saber que está a mamar e sabe mamar sem saber que sabe. Esta condição é o alicerce determinante de o Homem, durante toda a sua Vida existencial, pensar fazer livremente o que faz por fatalidade.
2. Ambiente Eco-Social na sua dimensão temporal - Cada homem é o corolário da existência vivida pela criança que foi; tudo o que um homem faz, na comunidade, foi aprendido numa aprendizagem psico-social.
3. Factor Genético - explícito na vulnerabilidade corporal desenvolvida, desde o nascimento, através da senescência, numa dialéctica de insistência de o SER-Humano se manter existente.

Assim, até que ponto somos livres nos nossos comportamentos? Não estará o Homem limitado, em sua liberdade, por sujeição aos condicionamentos do corpo, aos condicionamentos do existir? É que o Homem julga-se livre quando satisfaz as suas necessidades, ultrapassando o conflito, isto é, quando a motivação não é reprimida pelo automatismo social límbico. Assim, liberdade é uma realidade virtual, é uma efemeridade, é um pensar e um sentir, em inconsciência da não-liberdade.
As realidades são apenas a sua interpretação, são apenas a sua imagem, são o que cada um de nós pensa e sente delas; mas deveriam ser e virão a ser o “númeno”, o “a priori” de Kant, que é a “alma” da coisa, é o que está para além das aparências sensíveis, para além do superficial.

A dignidade interveniente do médico

Na relação médico-Doente, o médico deverá intervir em pedagogia heurística, isto é, o Médico deverá ajudar o Doente a descobrir-se, a encontrar-se, a conhecer as causas e as razões do “seu adoecer”, do “ser doente” ou apenas do
“ter doença”; deverá ajudá-lo a adquirir Consciência de Si.
O Médico terá de assumir-se responsável, mas responsabilizado por Si e não pela instituição, não pela convenção, não pela sociedade; terá de confrontar-se com a exigente responsabilidade endógena e de conferir a dimensão certa à aligeirada responsabilidade exógena, quase sempre falsa ou submetida a interesses materiais. Só o Médico digno confere dignidade ao seu acto, na defesa da dignidade que vive no Doente, e médico digno é aquele que conhece as suas indignidades, os seus erros, as suas limitações; é aquele que suporta o seu acto e todas as consequências dele, é o que não liberta as suas frustrações em agressividade no Outro; o Outro muitas vezes é o Doente. O respeito por Si e pelo Outro deve ser o corolário do saber já que, só assim, é respeitado o não-saber, no Outro e em Si. No cerne do não-saber encontra-se a inquietação, a dúvida e a necessidade filosófica que dinamizam o médico na via da sabedoria. A dignidade implicita mérito e demérito, punição ou merecimento, direitos e deveres; mas o mérito e o demérito do Homem não são hereditários mas sim adquiridos nos espaços eco-sociais, nos quais se situou desde o nascimento e, à medida que o adquirido o foi estruturando, o inato foi perdendo grandeza.
A noção de mérito pessoal também deve ser repensada para que a dimensão do Homem seja corrigida e reduzida à de homem modelado pelas determinantes já referenciadas: a Consciência Teleológica da Espécie, o meio eco-social e o factor genético. Cada homem é portador de todos os outros que lhe forneceram ou condicionaram pensamentos, sentimentos e movimentos; quero dizer que cada homem contém os outros homens com o equipamento do saber que eles lhe permitiram e como lhe permitiram. Em todos eles se encontram, em evolução, numerosas personalidades do EU; entre nós todos, há uma osmose cognitiva e afectiva. São as mulheres e os homens, em conjunto, que constituem o conceito de SER-HUMANO numa visão universalista de realidade, de exatidão e de Verdade que constitui doutrina imprescindível na práxis da Medicina holística.
Nós entendemos a miséria física e espiritual de outrem porque a conhecemos em nós; só compreendemos bem o que já sabemos ou o que nele se possa integrar pelo que, quando criticamos os outros, estamos inconscientemente em autocrítica, condenando no outro o nosso defeito, com o intuito, também quase sempre inconsciente, de propalar a nossa falsa integridade.
Esta consciência deve conduzir-nos a muita humildade porque, quando julgamos o Outro, estamos a julgar alienadamente o universo Humano no qual nos incluímos. Em critério heurístico e consciência axiológica, o Homem não deveria ser julgado pelo que faz mas antes pelo que É porque, Quem faz, aquilo que faz, é Aquilo que a Pessoa É.
O genótipo de um homem, o seu capital genético, deve ser considerado mais um conjunto de potencialidades que de desculpabilizantes inferioridades pré-determinadas ou fatalidades. A fatalidade tem íntimas relações com a ignorância; hereditário é capacidade de sermos e o que somos é não só desenvolvimento por nós fomentado daquela capacidade, informação, memória em acção, consciencialização, responsabilização e esforço nosso, mas também é algo adquirido dos outros e, de certo modo, pertence-lhes, quero dizer, as nossas acções são também condicionadas pelos outros e nós, em inconsciência, julgamo-nos a agir em absoluta autonomia e isenção; porém nem o Absolutismo é compatível com a Vida existencial do Ser humano, nem ninguém, por mais isento que seja, conseguirá ser isento de Si mesmo.
Perante o Doente, sejamos lúcidos, humildes, solidários, compassivos, distanciando-nos de nós, na aproximação e na entrega a Ele. Sejamos felizes dando afecto a quem sofre; sejamos felizes na Felicidade dos outros. Na dádiva encontra-se a solidez da Riqueza que felicita; as outras riquezas são ambíguas, efémeras em felicidade e contêm em si a pobreza do “ter” e o desencanto da precaridade. O afecto, o Amor, é uma emoção que, por ter a grandeza do Infinito, é em nós incompleta porque o Limite é por nós inatingível; mas Ele, o Amor, não sendo efémero, é perturbantemente oscilante e, no entanto, no seu oscilar, dura mais que a existência, dura a VIDA. É no Amor que o médico encontra a sabedoria aplicável no Doente, mercê das ferramentas adquiridas na Escola e também noutras aprendizagens e é pelo Amor que o médico se eterniza para além da sua existência, para além do seu corpo, para além da morte; porque morrer não é só não existir, é desistir de existir, é perder o corpo que confere existência ao SER.

As efémeras validades científicas

Termino; mas, não antes de uma curta vadiagem intelectual a sublinhar as nossas limitações recusadas e os nossos sonhos, a realçar a necessária e imprescindível aquisição de consciência do que somos. Com o tempo consumido na nossa práxis e depois de sacudidos pela perplexidade da euforia que adveio de nos julgarmos senhores do saber, tomamos consciência do quanto aprendemos com a dúvida e com o erro, e também com a tristeza, com a dor, com a desgraça e com o sofrer daqueles que nos pediram ajuda; hoje, mais humanizados, questionamo-nos: que sabemos nós do que julgamos saber? Havendo muitas diferenças entre nós no saber, como somos impressionantemente iguais no infinito da nossa ignorância!
Constatamos que a Ciência, na procura da Verdade, é uma falhada cópia de sucessivas falsidades validadas, de efémeras validades que, até hoje, só nos ofereceram precaridades. Constatamos que pouco mais possuímos para além das ilusões de possuir e, não obstante, as validades enquanto duram, são reais e são necessárias para nós e para o Doente, e imprescindíveis quando impregnadas de magia e de humanismo; assim, elas são a “psicomatéria” da relação empática na situação terapêutica. É que a Medicina sem imaginação, sem intuição, sem sonho, sem magia, carece de Arte e é ruína espiritual; mas a Arte, não apoiada pelo conhecimento, é ruina maior. A Ciência nunca deveria separar-se do fantástico; o nosso equilíbrio e o nosso sucesso encontrar-se-ão na realidade do fantástico; isto foi o segredo de Freud, de Einstein, de Copérnico e de Galileo, de Newton e doutros. As regras científicas são meras estatísticas de transparência contestável; e certo é que a Ciência, infelizmente, nunca conteve o definitivo ou o irreformável, mas apenas o provisório que obriga à revisão; todavia, devemos nutrir a esperança de que, à força de progredir, a ciência médica acabará por atingir, em visão antroposófica, alguma coisa válida, real, e perfeita, em que um homem de bom senso possa acreditar.
A caminhada para a Perfeição é tão assustadora como inebriante mas, não desistamos, não tenhamos medo do perfeccionismo, porque ninguém de boa saúde mental pode temer o que ninguém alcança.

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